<i>Ronda das Mil Belas em Frol</i>,<br> de Mário de Carvalho<br><i>Adoração</i>, de Cristina Drios
A literatura portuguesa foi, em 2016, tão errática como todos as outras literaturas dos países em que os mercados, essa entidade tentacular que tudo parece dominar, já se apropriaram dos produtos ditos literários, como modo, mais um, de submissão e esbulho. Tivemos os inevitáveis livros de Rodrigues dos Santos, das Margaridas, das Castel-Branco, das Sacadura Cabral e de umas quantas caras conhecidas da pantalha televisiva, que decidiram vir à liça e contar-nos a vidinha. A Literatura, como é evidente, nada tem a ver com estes fenómenos mediáticos e comerciais. Miguel Real, no livro Geração de 90, faz o correcto enquadramento sócio-político e cultural destes géneros paraliterários.
Sem dogmatismos – que são sempre do território de sujeição – julgo devermos avançar no sentido de se encontrar respostas para as questões pertinentes com que hoje se debate a coisa literária, desde o estudo da fenomenologia dos processos criativos, da sua ligação ao tecido social, o diagnóstico das derivas hodiernas e dos «novos fascismos» de que falam António Guerreiro e Pacheco Pereira, até aos meios de difusão do livro, da sua fruição e debate crítico. Há, neste âmbito, uma iniludível ofensiva reaccionária que, longe já do logro passageiro que foram as teses de Francis Fukuyama do fim da história, utiliza a ideologia conservadora e neoliberal, de Friedrich Hayek e Milton Friedman no sentido de movimento histórico retrógrado (do que o público quer), e da desresponsabilização do Estado face ao ensino e à cultura, servindo-se da Literatura para gerar imaginários frustres, numa visão economicista e parasitária da cultura de massas.
Não é o caso de dois livros que hoje vos recomendo: Ronda das Mil Belas em Frol, de Mário de Carvalho e Adoração, de Cristina Drios. Sendo autores de gerações, estilos e experiências literárias diversas, um com obra vasta, consolidada e reconhecida, outra a publicar o seu segundo romance. Une-os contudo o rigoroso tratamento da língua, o respeito pelo leitor, a rara qualidade literária que ressume destes textos.
Roda das Mil Belas em Frol, apresentado por Mário de Carvalho na nossa Festa, é um livro estranho, invulgar numa obra que só lateral e episodicamente teve o sexo, as relações íntimas entre homem e mulher, como instrumento central de incursão diegética. Neste livro singular, mordaz e surpreendente, Mário de Carvalho junta a sua voz a uma plêiade de autores que, tal como ele o faz nestes 17 pequenos textos, superiormente cultivaram o género. Ao longo deste Roda das Mil Belas em Frol, encontramos o gosto pela exaltação lírica do corpo, os sobressaltos eróticos, a herança africana, oriental, grega, latina, ou anglo-saxónica do prazer, do gosto pelos jogos de sedução que a nós, portugueses, igualmente nos acompanham desde o Cancioneiro, passando por Gil Vicente, que refinou o género e tornou a língua mais ágil, dizível e teatral; nos poemas de Folhas Caídas, de Almeida Garrett, eivados de pulsão erótica; no erotismo carnal de António Botto; no impressivo lirismo de Raul Leal; na expressividade do amor lésbico de Judith Teixeira; pela imagética surreal, provocatória ou de combate de Cezariny, Alexandre O’Neil, Ary dos Santos, Mello e Castro e Natália Correia; pela escrita libertina de Luiz Pacheco; pelo erotismo esparso em alguns poemas de Herberto Hélder, no realismo metafórico de António Lobo Antunes, ou na prosa poética de Rui Nunes.
Há neste livro de Mário de Carvalho, nesta incursão pelas variantes abordagens da sexualidade, das perversões, rupturas, desencantos, exaltação dos corpos e sua atracção, da efemeridade dos encontros eróticos, um preclaro pudor (veja-se este recurso que abre o conto Epílogo: «Detesto coisas moles na minha mão»), um modo exigente, sóbrio e elegante de dizer o íntimo, a vibração do corpo da mulher, o arrebatamento, o desespero, os fracassos. Tudo sem recorrência ao vulgar, ao obsceno, elevando a língua aos seus mais exigentes limites e reconciliando-nos, uma vez mais, com ela. Com humor, com rara mestria e acutilância nesta superior arte de contar.
Adoração, de Cristina Drios é também um dos grandes livros de 2016. Denso, com uma escrita desenvolta e culta, oscilando entre duas épocas distintas, o início do século XVII e a segunda metade do século XX, Cristina Drios percorre o corpo ferido de uma Itália que as máfias e o proto-fascismo transfiguraram, deixando-a quase ingovernável e refém de todos os golpistas; território mítico em que todas as grandes experiências humanas foram possíveis, em que o horror conviveu com o belo e o génio, a par com a mais soez abjecção.
É da escuridão onde a luz se expande e se torna sol, que este livro nos fala, um mágico vórtice como num quadro de Caravaggio, este Adoração de que seguimos passo a passo a sua execução, que lhe sabemos dos corpos que lhe serviram de modelo, corpos improváveis porque isentos de beleza, de formas harmónicas que as convenções estéticas do renascimento impuseram à arte ocidental, aqui os vemos expostos ao génio demiurgo do pintor, surgindo transfigurados dos pincéis, das sombras da tela, do vermelho da virgem, do dourado, das agrestes rugas dos rostos. E a luz a romper o negro do quadro Natividade com S. Francisco e S. Lourenço de um tal Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio, a dar-lhe espessura, humanidade, impressivo significado. Tela roubada em 1969 do Oratório de São Lourenço, em Palermo, supõe-se, nesta especulação ficcional que tenta desbravar o real, por um comando da Máfia.
Será igualmente a Máfia que executará os atentados contra os juízes Borselino e Giovanni Falconi, em 1992 e assassinará Chiara, a mulher do comissário Salvatori, responsável pelo processo da tela de Caravaggio. O séculos XVII a entrosar-se com o século XX, a mestria narrativa de uma autora que domina os tempos descritivos, as analepses, os diversos períodos históricos e os fragmentos discursivos, com enorme capacidade técnica, destreza vocabular e sólida bagagem cultural.
Soberba a descrição das memórias de Matteo Matei no seu palácio dos Nottetempo, a busca pelo Sul de Itália, por Malta, pela Sicília desse esquivo pintor, desse rufia, bêbedo e devasso, aguardando perdão papal pelo assassinato de Tomassoni, esse Caravaggio que lhe haverá de pintar Adoração e voltar a perder-se pelo imenso mundo deixando-lhe a ele Matteo Matei, uma ferida no peito. Livro que nos transporta aos rumores de um tempo turbulento, corrupto e abjecto, mas singularmente belo, exuberante e criativo do renascimento no seu período mais áureo, em que a arte tinha o poder da transfiguração e do sublime: «A sombra da obra de Caravaggio excede a altura das sombras do maior obelisco, do mais alto pináculo de catedral. (...) Nós, comuns mortais, sem obra nem valia, medimo-nos apenas pela largueza da nossa sombra na terra, a do nosso carácter.»
Ronda das Mil Belas em Frol, de Mário de Carvalho – Porto Editora
Adoração, de Cristina Drios – Teorema
* Rectificação: por lapso, o nome do autor da peça da semana passada, sobre Justiça, saiu truncado – João Torres em vez de José Neto. Pelo facto pedimos desculpa.